sexta-feira, 5 de março de 2010

caderno

como escrever? este peso tem-me atormentado os dias. se se mergulha demasiado pode acontecer que não se veja o fundo e que seja tarde para voltar acima. o estado intermitente é o pior. escrever é um vício. pode passar-se a vida toda a escrever sobre o vício. mas qual é o interesse disso? isso já é um dado adquirido. é preciso enganar as frases e disfarçar o vício. tornar o vício da escrita numa espécie de parasita. descobri que não se pode ter estilo. quer dizer, é inevitável ter um estilo, mas não se pode ficar refém do estilo. a voz está lá sempre. a voz não é o estilo. só a voz é que escreve. o estilo abusa facilmente da armadilha. o estilo quer o quê? o estilo quer a sua vaidade. logo o estilo procura a vaidade. o estilo julga-se perfeito, é um estilo. a voz não se julga perfeita nem imperfeita. a voz é a necessidade. um estilo pode construir-se. uma voz não. há escritores de voz e há escritores de estilo e há escritores de voz e de estilo. todos com as suas características. nada pode ajudar alguém a escrever. a única coisa que pode ajudar alguém a escrever é a solidão. não há forma de controlar isto. escrever de manhã é o melhor. não que a magia da noite não seja sedutora. mas nada como escrever de manhã. quando o corpo ainda está naquela fase de pré-acção. quando a cabeça está mais desenvolvida do que o corpo. de manhã a escrita sai com muito mais naturalidade. a noite é para a poesia, sabe-se lá porquê, talvez por alguma causa energética. talvez por causa da luz. a escrita pode ter aqui uma comparação com o sexo. por exemplo: se se pensar na diferença do acto sexual. no acto sexual de manhã e no acto sexual de noite. ou talvez isto seja apenas na minha cabeça e ninguém concorde com isto. mas eu acho que há uma maneira de encarar as coisas de uma maneira completamente diferente. enfim... volte-se ao assunto da escrita. há quem precise de silêncio para escrever. eu gosto de escrever com música. não gosto de ler com música. não gosto de me ler com música. não que não escreva em silêncio. a questão é que gosto de dançar. gosto de escrever dança. gosto de escrever dentro da cabeça ao andar. é preciso escrever constantemente. chega-se a uma altura em que não importa o quê. claro que há sempre a questão: o livro. o que é o livro? o livro é um formato. também o teatro é um formato. entre os dois talvez prefira o livro. um livro é uma espécie de encenação de palavras. mais ou menos. quando se escreve chega-se a um ponto em que as coisas deixam de sair da cabeça. aparece a voz. de repente é a voz que escreve. a voz. a voz da escrita é como a voz do actor. ela tem de ser aquecida. ela tem de ser aquecida para que deixe de lado toda a treta, para que deixe de lado o estilo, a voz tem de ser mais alta do que o estilo. o estilo é o meio que a voz usa para se escrever a si mesma. porque é que não tenho conseguido escrever ficções? ou até que ponto esta amostra do interno é justa? ou até que ponto se consegue aguentar a saturação? não há respostas. cair no carácter diarístico é a armadilha constante da escrita. a estética da crise é uma estética sempre estranhamente apetecível. cada vez é mais difícil fugir da violência. está-se de tal maneira mergulhado em violência que se torna quase impossível escapar. comem-se as suas imagens constantemente. os heróis são os que abusaram da violência, são os que sobreviveram ao caos, são os que salvaram vidas, são grandes feitos que vencem o caos. não há heróis correctos, por assim dizer, heróis correntes. há sempre uma vitória no caos. há sempre o contraponto caos. a balança apresenta apenas dois lados, é o vício ocidental, o eterno combate herói vilão. depois a escrita e a construção de ficção criaram a vítima.

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