segunda-feira, 31 de maio de 2010

era um soldado que tinha voltado de uma guerra sangrenta através do tempo. num país distante. uma guerra que se fazia crua na ausência da língua. voltou para casa mas já nada o identificava. como se o ser se tivesse evaporado no quente saturante dos combates. na linha da frente. onde a violência se espalhava com o olhar fixo na morte do outro. soldado em deriva. vazio. com os pés que pairavam sobre o espaço. talvez estivesse mais magro. com uma camada de sujidade interna que seria impossível de desentranhar. talvez fosse outro. uma construção nova que se dava por dentro da sua cabeça como um colapso. as rupturas e a violência. soldado vagabundo de si.

domingo, 30 de maio de 2010

naquela noite tudo parecia orientar-se para o fim do silêncio.
o mundo vestia a sua roupa de gala. cobria-se de tinta.
os homens na rua dobravam as costas ao infinito.
os insectos vieram passado pouco tempo. era cedo.
morderam as mãos até que algo fizesse disparar os vasos sanguíneos.
trocaram-se ideias gastas de viagens a países imaginários.
fumaram-se drogas como brindes em família. deram-se beijos.
cantaram-se canções distantes. melodias velhas. coisas esquecidas.
eram os olhos que se afundavam na terra húmida.
não havia lágrimas. o rosto apresentava uma secura exemplar.
a cabeça sonhadora levou o corpo para as escadas.
na rua. outra cabeça sonhadora acompanhava outro corpo.
reis de nenhum reino e em inquietação. mágicos. mãos trémulas.
mãos mordidas. coladas. insectos ínfimos na paisagem infinita.
lá em cima estavam estrelas mortas com uma luz que se aguentava.
outras cabeças diferentes. fugiu-se dali sem rumo. em busca de um abrigo.
em busca de água que desse outro sentido à garganta.
beberam-se poemas. cuspiram-se passados felizes ou tristes. insignificantes.

na sua vida regular deparava-se constantemente com privações que considerava abaixo do humano. mas seguia o rumo. seguia-o de uma forma tão pouco ligada que se cobria cada vez mais com a escuridão latente do vazio. um dia tinha visto a morte. nada de especial. tinha visto a morte numa noite de inverno, quando saiu de um lugar público, com um rasto de sangue no chão e na boca. estava frio nessa noite mas não chovia. provavelmente é a ausência da chuva que lhe provoca o impulso da fuga. uma voz. luzes azuis. vergonha. a morte armadilhada encontrava-se nas valas das estradas, dos caminhos ermos, do silêncio. no dia seguinte as mentiras e a roupa vermelha. e o nada. esse nada que quando se instala parece que fica. como um filho que se carrega até que atinja o sentido máximo da liberdade e da libertação.

o autor em estudo.

sábado, 29 de maio de 2010


















cada vez acredito mais numa coisa. não há revoluções sem violência. não há rupturas sem violência. hoje fui à manifestação e não deixa de ser frustrante. 300 000 pessoas. 300 000 pessoas à espera de quê para agir???

homenagem. mais um que se foi.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

de repente começa uma tremura nas mãos.
observas-te. estás tranquilo na aparência dos dias.
por dentro saem cobras através da traqueia.
mordem a garganta. o grito é seco.
o grito é mudo na sua essência física.
as mãos. uma espécie de raiva latente.
as frontes. um aperto no centro da cabeça.
como se o corpo se fechasse na noite em que respira.
o fumo compulsivo ocupa-te o corpo que um dia foi de osso.
a memória vem e vai. é um disparo de realidade.
acidentes. acidentais. orgãos que se revoltam na apatia.
descobrem-se os círculos. espirais que envolvem os braços.
ódio. revolta cinzenta. corredores hospitalares.
luz branca e secura. vómito. alucinação. silêncio.
no dia seguinte assumes a vergonha da sobrevivência.
e tudo no mundo se abre com o horário do costume.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

aquecimento sem continuação

a casa funcionava-lhe como um escudo demasiado protector. encontrava-se dentro dela como uma larva em processo. guardava o silêncio. dizia-se que falava pouco para não estragar as palavras. bebia os poemas dos outros com uma gigante sede de infinito. por vezes chorava. recusava as visitas do sono. dizia que a vida era demasiado curta para ser passada a dormir e que o mundo tinha criado tanta coisa... e que um dia o seu corpo se tornaria pó e que aí já nada haveria a fazer.
porque a verdadeira violência da vida se esconde nas imagens da realidade. os homens despidos de si mergulhando no caos das luzes. ritmos. as ilusões constantemente massacradas pelo imenso respirar da espécie. é uma doença que se propaga como um consumo desenfreado de ar e loucura. uma doença de fome. a mão aberta para cima espera um momento ínfimo que seja todo o futuro luminoso. eles viram as costas. as veias das cidades absorvem-se em movimentos de branco e de vermelho. máquinas de nada. insectos carnais rebolam-se sobre lençóis de sangue ou de ouro. alguns sobre cartão. alguns directos no alcatrão. ou nas pedras. ou na terra. dentro dela. e todos os dias se nasce absolutamente. e todos os dias se morre naturalmente. a luz sucede à treva. como uma deriva cíclica em que as coisas mergulham numa espiral de caos. a medula óssea. o universo que fragmenta olhares previamente quebrados. nasceu-se assim. e talvez a história do tudo seja já uma coisa escrita. tatuada num braço de um deus com um sentido megalómano.

terça-feira, 25 de maio de 2010

vamos lá?

homenagem do tempo. andrew bird.
























era um dardo de sangue que saqueava a noite. alastrava-se como uma revolta silenciada. como um incêndio que comia o corpo à sua passagem. ao fundo estavam as casas. dormiam as crianças. o sono dos justos. ainda santos sem mácula que esperavam o aparecer do grito furtivo. alguém cantava na paisagem da vida. alguém se debruçava na sua janela para olhar a rua. tudo no quarto estava escuro. tudo menos uma estranha inquietação da insónia física. uma espécie de temor do sagrado. de medo da justiça. de fuga à causa. a criança tornada homem de repente ganha o medo absoluto da exposição de si. imagine-se que mija na cama. que os sonhos se sobressaltam até que o chão ampare a queda húmida. numa casa de praia alguém bebia palavras como se o amanhã fosse nunca. como se o desespero da eternidade fosse uma lógica verbalmente transmissível. traziam água. alguém lavava os pés ritualisticamente. silêncio. a água fresca sobre os pés. o barulho da água fresca sobre os pés religiosos descalços. um velho bebia vinho. bebia vinho que era sangue transmutado. e nessa transmutação de claridade algo morria no mundo. algo se disparava. algo se ejectava. os gritos que haviam de surgir tinham a dimensão propulsora do crime perpétuo. ninguém se lembra do seu nome. dizia-se que surgia nas noites de bebedeira. não tinha a dimensão palpável. surgia nos sonhos como um assassino de almas. teimava em manter-se na inquietação do mundo. em todos os caminhos cruzados. nas janelas de vidro transparente ou fosco. um homem levantava-se. a cidade escutava os seus passos na escuridão. era uma cidade pequena e as ondas eram de uma banalidade muda. os passos tornavam-se gigantes. grotescos. assumiam o ruído de máquinas de escrita ancestrais. as crianças choravam uma a uma. como cordas que soavam por simpatia. crianças instrumentos. salvações de tantos. perversas máquinas do trabalho e ganha-pão dos ricos. o homem da obra. o homem da fábrica. a mulher da loja. durante o dia alguém se manifestava. mas as polícias vinham com uma venda escura e os olhares desapareciam. a cidade continuava mergulhada na sua organização fútil. o dardo de sangue da noite era apenas um pretexto.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

como seria possível que a sua voz ecoasse dentro da sua cabeça com uma urgência de tal forma gritante que era capaz de cortar o próprio caos? surgia como uma memória em fragmentos dispersos. voz grave e pintada de inocência e revolta. as frases ditas como uma torrente líquida. palavras que se seguiam umas às outras. paisagens. se por vezes se construiam alucinações, a ilusão dos dias. a máscara da vulgaridade e do abandono. andar sem tocar no chão. porque o salto já tinha sido uma queda noutros dias.
e pronto, deixar o palco mais uma vez... para voltar à escrita mais uma vez. fazer o balanço do palco mais uma vez... para voltar a casa mais uma vez. passar o dia a dormir para não conseguir dormir de noite. voltar a encontrar o lugar sagrado e voltar a viver nele.
próximas etapas:
- preparar o laboratório
- fazer o calendário do espectáculo
- voltar ao porto
- estudar o texto
- juntar as coisas todas numa só casa
- escrever mais
- ler mais
- voltar ao palco daqui a dois meses
- conseguir reunir a minha máfia para criar um grupo
- rebentar tudo

segunda-feira, 17 de maio de 2010


em estudo



era ténue a fronteira. lembrou-se de uma vez, uma só vez, em que ela se tinha mostrado como uma penitente, uma mulher com o rosto ofuscado pelo vazio do que se seguiria. tempos de guerra, talvez. levantou-se da cama. ele fumava um cigarro no seu canto de silêncio. talvez arrumasse as malas dentro da sua cabeça. talvez fizesse juras eternas de ruptura ou outras coisas, outros corpos que desfilavam por dentro das suas pálpebras como vultos de prazer ou de inquietação. ela levantou-se. estava nua. ele vestido com o seu cigarro. ela com as suas tetas descaídas. exposta. ela disse-lhe: anda já para a cama. agarrou nele pela mão. levou-o. embalou-o nos seus sonhos de menina gigante. tornada princesa com o calor dos lençóis. era demasiado tarde. o acordar tinha já trazido o sentido inevitável do fracasso. a viagem estava marcada. o futuro para sempre comprometido. de qualquer forma ela nunca lhe tinha pedido que ficasse. abandonaram-se para sempre com as mãos agarradas ao vulto de um amanhã que nunca mais visitou o quarto. depois cada um mudou de casa. e as vozes esquecem-se mais rápido do que o rosto.

domingo, 9 de maio de 2010

demasiado ruído na cabeça. os homens nas casas atiram com as crianças ao lume. tenta-se o golpe do sono mas ela não aparece para cobrar a noite. tudo se torna insinuoso nos dias. a água corre nas ruas e encharca o cérebro como se fosse álcool. as mentiras vestidas de negro tornam-se miraculosamente pintadas de cores garridas como no dia dos mortos de um país distante. os olhos feridos pelo truque das imagens. os pés saltam para evitarem a terra e mais o seu chamamento. tudo é precoce neste reino. são os saltos pneumáticos em direcção ao centro. confundem-se com metamorfoses. um voar silencioso que estremece o sonho. andar em deriva pelas coisas alheias. confundir. evitar. lutar com uma ordem estabelecida que não produz nada dentro. o dentro. de dentro. para dentro. adentro. pode chamar-se o amor na sua distância eléctrica. pode gritar-se ao mundo até que o mundo se abra na sua inocência pura. revoluções. ser explosivo.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

depois o teatro tem esta magia que emerge do caos. uma espécie de anarquia ordenada. o actor em fumo. textos que se tornam vida diante dos outros. sacrifício. entrega. paixão desenfreada sobre as tábuas e debaixo das luzes. ganham-se companheiros de luta. comunhões supremas. partilha máxima do corpo.

música de estreia (repetida ao longo do tempo até se tornar ritual)

domingo, 2 de maio de 2010


antígona.
o crime dos corredores dos hospitais.
nem violência
nem droga
o problema é a pobreza.
depois de cumpridos os ritos
a carne cumpre a ilusão.
salvação.
evolução.
revolta.
penas abusivas para o privilégio dos bufos.
raça superior de falsos homens mulheres.
porque o sistema não tem a poesia.
o sistema não tem cheiro.
nos bastidores da política
o desfile
armas secretas sobre as cabeças.
a alienação subversiva do humano verdade.
mortos-vivos.
rei lear:
cegos guiados por loucos.
depois do lixo consumível
o amor despido nas livrarias
nas lojas
no meio de milhares de cosméticos
camisolas
manequins de ouro.
o som do fundo vem devagar.
as ilusões cortam.
os pulsos.
a goela.
a electricidade.
a água.
a fome que se propaga com os supermercados.
mulher solitária nos corredores brancos.
sabão que se esfrega nas pernas.
o irmão morto debaixo da terra.
que salta ou voa para o eterno.
na televisão a verdade é cuspida aos solavancos.
a verdade é atravessada.
construção.
montagem.
argumentação.
quantos morreram verdadeiramente?
ir para casa no silêncio da noite
no silêncio dos mortos
as palavras que se propagam como dardos de sangue dentro do cérebro
inventar revoluções nas veias.
sentir a idade.
medo.
vontade.
prazer gigante nas batidas cardíacas.
membros cortados.
famílias económicas.
doentes.
terminais.
terminados.
a luz dos dias através dos caminhos e dos transportes
húmidos
cheios de pó
cheiros a gasolina.
mulher que sai de casa.
depois da violência brutal.
eu era um nome sagrado
que vivia numa caixa entrecortada de iluminação dura.
no meio da festa
sabor vermelho que escorre nos lábios.
a tua política está morta.
nunca serás mundo.
um dia serás enforcado na praça
ficarás em exposição dias a fio.
um dia chegarás ao texto exílio.
a polícia fará a sua ruptura.