terça-feira, 25 de maio de 2010

era um dardo de sangue que saqueava a noite. alastrava-se como uma revolta silenciada. como um incêndio que comia o corpo à sua passagem. ao fundo estavam as casas. dormiam as crianças. o sono dos justos. ainda santos sem mácula que esperavam o aparecer do grito furtivo. alguém cantava na paisagem da vida. alguém se debruçava na sua janela para olhar a rua. tudo no quarto estava escuro. tudo menos uma estranha inquietação da insónia física. uma espécie de temor do sagrado. de medo da justiça. de fuga à causa. a criança tornada homem de repente ganha o medo absoluto da exposição de si. imagine-se que mija na cama. que os sonhos se sobressaltam até que o chão ampare a queda húmida. numa casa de praia alguém bebia palavras como se o amanhã fosse nunca. como se o desespero da eternidade fosse uma lógica verbalmente transmissível. traziam água. alguém lavava os pés ritualisticamente. silêncio. a água fresca sobre os pés. o barulho da água fresca sobre os pés religiosos descalços. um velho bebia vinho. bebia vinho que era sangue transmutado. e nessa transmutação de claridade algo morria no mundo. algo se disparava. algo se ejectava. os gritos que haviam de surgir tinham a dimensão propulsora do crime perpétuo. ninguém se lembra do seu nome. dizia-se que surgia nas noites de bebedeira. não tinha a dimensão palpável. surgia nos sonhos como um assassino de almas. teimava em manter-se na inquietação do mundo. em todos os caminhos cruzados. nas janelas de vidro transparente ou fosco. um homem levantava-se. a cidade escutava os seus passos na escuridão. era uma cidade pequena e as ondas eram de uma banalidade muda. os passos tornavam-se gigantes. grotescos. assumiam o ruído de máquinas de escrita ancestrais. as crianças choravam uma a uma. como cordas que soavam por simpatia. crianças instrumentos. salvações de tantos. perversas máquinas do trabalho e ganha-pão dos ricos. o homem da obra. o homem da fábrica. a mulher da loja. durante o dia alguém se manifestava. mas as polícias vinham com uma venda escura e os olhares desapareciam. a cidade continuava mergulhada na sua organização fútil. o dardo de sangue da noite era apenas um pretexto.

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