segunda-feira, 25 de outubro de 2010

sonhava coisas estranhas. uma vez tinha perdido o chamado céu da boca. gosto do nome. céu da boca. tinha-me caído. andava cheio de vergonha com a boca fechada e escrevia papeis para que os outros lessem. este sonho era sintomático da minha realidade. tinha perdido a voz. ninguém me ouvia. acho que nem eu me ouvia. inventava monólogos e melodias por dentro da cabeça mas sabia perfeitamente da minha incapacidade de os desbloquear. ganhava as minhas guerras assim. imaginava as mais belas tácticas de combate. criava os mais belos discursos sobre a vida e sobre o mundo. tudo numa espécie de silêncio em que a queda do céu da boca me tinha mergulhado. depois acordei. levei a língua ao céu e ele estava lá. tal como o meu silêncio.

domingo, 24 de outubro de 2010

e um dia vieram os pássaros distantes deitar fogo ao meu caminho. a alma não estava guardada e a aventura abria-se luminosa diante do corpo. noutros lugares diziam-se revoltas programadas. leituras inocentes de rebeliões mascaradas de fugas. a atrocidade é um sentido geral do fracasso. a mãe de um caiu sobre as pedras e não tornou a ver-se em espelhos. as proibições eram antagónicas. buscava-se alimento nos caixotes de fome. uma cidade deserta debaixo dos pés. correr sem escorregar em ruas molhadas. tomar banhos de chuva. mudar a respiração para uma casa em ruína e ir reconstruindo a vida aos poucos. já se merecia um pouco de silêncio. mas o fumo parece um inimigo constante e perverso e não deixa o sono vir descansar no meu pescoço. uma lágrima passeou depois do rosto. fez um pequeno mapa ácido. rosto peito chão chuva. coisas deixavam de ser coisas enquanto brincávamos. brincámos pouco. o mundo exigia vozes fortes e corpos gigantes. o poder enojava-me. o dinheiro trazia matéria morta das entranhas. afinal o que se procurava? de que lado estava o horizonte cheio de névoa e brilho? com as labaredas de um futuro cheio de paixão e de vida? de que lado estava o eu? o que era o eu? mera máquina funcional num sistema de máquinas enormes que sugavam tudo. que sugavam toda a força mínima que o corpo conhecia. começaram a vir linhas amarelas. as estradas deixavam a sua continuidade cortada. não se propagavam. chegava a noite e o olhar insistia-se baço. os fogos do mundo ardiam loucos. as pessoas ardiam loucas. explosivas. sonoramente brutas. às golfadas de sexo e profanação. comia-se com as mãos sujas do poder mesquinho do umbigo carunchoso. o carnaval já não era mais do que um crime maligno. a regra do lucro dizia silêncio e o silêncio instituía-se. os habitantes perdiam uma espécie de olho da consciência. lutavam. uns contra os outros ou contra si próprios. não fixavam um inimigo comum. implodiam. esqueciam-se de si. mortos vivos que provocavam a derrocada da sua carne por uma moral inócua. televisiva. uma vez uma mulher chegou com a falcatrua dos documentos. ela percebia dos documentos. a sua voz tremia na segurança que os documentos lhe davam. fixava os olhos do mundo com um mistério animalmente sombrio. a minha cabeça. a minha cabeça nas pedras. as pedras que de repente se tornavam vidros coloridos cheios de metáforas e frases feitas. tenho inquietações de fuga. fumo. cinzento na pele. obscuro no cérebro.
tanto tempo passou desde a última vez. se pudesse parar o mundo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

resumo alargado dos dias de cinza

uma conspiração do caos que se te entranha pelos ouvidos adentro
as vozes trazem mel e venenos
carregam-se como máscaras distantes que pisam os ombros
maldito corpo estrangeiro que pareces não te reconhecer em lado algum
um dia a sombra é fria e noutro embala-te carinhosamente
imagens no movimento sinuoso
imagens de reflexo
antíteses
quisto que se desenvolve na língua e que escurece o pensamento
as vozes de tinta que se espalham através dos ouvidos
ensurdecedoras no seu absurdo
o estar solitário como uma condição alheia
a revolta revólver
bombas bombas bombas
parlamentos que ardem diante dos olhos de multidões enfurecidas
bocas raivosas
olhos de sangue
corpo estrangeiro que sonha violências
multidões de fome
cabeça que explode
demasiado lentamente