domingo, 27 de março de 2011

porque era de sensibilidade que as pessoas se alimentavam
uns com os seus gritos entupidos na garganta quebrada
outros com a surdez magnífica do amor distante
a cabeça ficava num estado líquido
não se tocava no chão ao caminhar pela cidade de repente vazia
ninguém em lado nenhum nenhuma voz
perdiam-se laços durante a vida e isso era uma espécie de violação
uma estranha violação de máxima violência
estradas de atrocidade raiavam os olhos de vermelho
o meu corpo sentia-se pequeno na caixa opaca
a merda do meu silêncio corroía-me o estômago
um sabor de ferrugem ocupava a minha boca
um ligeiro sabor a sangue sujo
a carne fétida
se me alimentasse de imagens poderia voar
voar silencioso pelos sítios como um rato invisível
poderia decorar nomes e datas e planear futuros alheios
poderia dar cabeçadas na vida como se isso realmente importasse
transformar o corpo numa medalha de guerra sem estilo
um dia devo ter sido um relógio sem ponteiros para horas
as coisas surgiam incessantemente fugazes
rápidas velozes violentadas como flashes ou alucinações
a minha merda era o silêncio nada mais
a minha merda era o silêncio fraude que me obrigava a comer
a minha merda era gostar de feridas abertas
feridas que tinham o cheiro do sexo sujo
lambidas por animais famintos magros
com os cabelos pintados com tons de mentira e desespero
eram cães de nenhum reino
mas eu calava-me
o silêncio era uma tampa que se infiltrava na minha cabeça quente
na rua as casas explodiam e eu estava quieto
ausente e silencioso como um morto
como se a minha amostra de vida pudesse compreender alguma coisa alheia
e as salas ficavam milagrosamente pequenas
os disparos surgiam pela calada do sono
eram sensíveis as coisas
eram gigantes
tinham a dimensão do tudo
eram um vício mascarado
uma estranha dependência de massacre
os sulcos do corpo
monstruosamente mergulhados em cinza
mostravam apáticos o rosto da morte

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